Um Papa Jansenista


Na sua meditação sobre as tensões dialécticas entre Estado e Igreja (nos seus Elementos de Filosofia do Direito), Hegel conclui que o cisma na Igreja, longe de uma maldição, foi uma oportunidade – não apenas para o Estado, que logrou "desenvolver o seu verdadeiro carácter e tornar-se uma realidade auto-consciente, racional e ética", mas para a própria Igreja, que viu incrementada a sua liberdade e racionalidade, e mais ainda para o pensamento, o beneficiário último desse aumento histórico de racionalidade e de liberdade.
 
Em 1555, vergado à epilepsia, à gota e às sezões, o Imperador Carlos V abdicou do mais extenso império do mundo para terminar os seus dias na quieta clausura de Yuste.
 
Pensei nestas duas coisas mal soube da renúncia de Bento XVI. O velho intelectual bávaro quis sair da fremência do mundo no seu melhor registo – o racional. Num mundo que idolatra e que aplica todo o fervor às manifestações mais superficiais do carisma, à mundanidade do dramalhão e do fait-divers, ele lembrou-se da razão do seu serviço, da razão do seu dever, da sua razão – e não quis, contra essa razão, ser servido em holocausto à tirânica expectativa da populaça, que esperava assistir à sua agonia. Imagino o alívio que sentirá de poder regressar, no ocaso, à privacidade da sua fé, à sabedoria crepuscular da desaprendizagem e do despojamento, ao silêncio, à contemplação, à humildade. Cumprido o seu dever, será agora o mais livre dos homens, porque soube, no fim, reordenar racionalmente a uma exiguidade comportável, a uma austeridade claustral, o espaço da sua realização terrena.

1 comentário:

  1. Querido Amigo,
    chama, muito justamente, a atenção para um aspecto tão subvalorizado e que até pode fazer vacilar a minha análise da fuga de Bento XVI à Cruz respectiva: arcar com a desaprovação e o desdém emanados da retirada não consubstanciará uma provação maior ou igual à do sofrimento visível de um corpo que se arrasta? É prescindir da Glória notória da palma do martírio e, na confinada interiorização decorrente, um não menor exercício de modéstia devota que, plenamente, justifica o título genial com que nos brindou.

    Abraço

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